Feira ampla, geral e irrestrita
Nem todos vão acreditar, mas Feira já foi cidade de vida pacata e agradável, de ruas e praças largas, motivos de orgulho e ufanismo dos nativos, que viam, ali, razão de superioridade sobre outros centros urbanos, mais conhecidos e mais famosos, como Santo Amaro, São Felix e Cachoeira, de vias tortuosas, estreitas, em que ladeiras, calçamento irregular e casario antigo davam a impressão de que o Brasil dos tempos do rei ali continuava imutável.
Até a capital do Estado perdia na comparação. No entanto a cidade parecia mais morta do que viva. Quase ninguém nas ruas, cinco ou seis carros de aluguel na Praça da Bandeira, que dormitava sob o sol de verão ou parecia encolhida nos dias de chuva, ouvindo os auto-falantes da “Casa da Louça” de Hermógenes Santana inaugurados, festivamente, com Georgina Erismann, ao piano, e a voz de Euclides Mascarenhas e Willobaldo Silva (cantor, violonista e tipógrafo).
O centro da cidade era enfeitado pelas normalistas que povoavam a Rua Conselheiro Franco e, nas horas de folga, a bucólica Praça da Matriz, quando mocinhas despreocupadas, alunas da Escola Normal, espalhavam beleza e juventude na tristeza das ruas e do comércio desanimado. Funcionário do Banco do Brasil teve que se afastar da cidade. Reapareceu, anos depois, na Rua Conselheiro Franco, perguntando, desolado, onde estavam as normalistas. Não havia mais. A Escola Normal já não existia.
Feira de Santana, entretanto, transformava-se como se movida por feitiço prodigioso nas segundas-feiras. A transformação era rápida e completa para alegria dos comerciantes. Desde as primeiras horas da manhã, mal o sol esquentava, fervilhava a feira livre na Praça João Pedreira, que nos últimos tempos começava de véspera. A cidade enchia-se de visitantes. Chefes de Distritos, comerciantes e fazendeiros apareciam de guarda-pó, paletó e gravata em montarias ajaezadas em que não era incomum a presença da prata.
Rapidamente centenas de pessoas tomavam as ruas e enchiam as praças. A feira livre, que começou na Praça de João Pedreira, com o passar do tempo espalhou-se. Tomou a Praça Dr. Remédios Monteiro, onde havia forte comércio de couro de Álvaro da Silva Lima (Ioiô de Calú) e Gonçalo Alves Boaventura, invadiu a Rua Mal Deodoro com a venda de móveis, e por último, a Avenida Getúlio Vargas.
O número de montarias cresceu tanto, nas ruas centrais, que na Sales Barbosa instalaram, nas calçadas, argolas de ferro para prender os bichos, e forçou o aparecimento de abrigos para animais, em várias partes da cidade, “estacionamentos” como acontece, hoje, com os automóveis. O ajuntamento de animais nas ruas criou problema contra o qual as senhoras protestavam. Os bichos, ainda que amarrados, procuravam dar vazão aos naturais instintos, promovendo espetáculos que os humanos imitavam, nos “castelos”, que muitos havia, de grande movimento às segundas.
Amantes, de alguma forma reprimidos e vigiados, vinham a esta cidade resolver seus problemas, de modo que a feira livre era mais ampla, geral e irrestrita do que geralmente se pensa, com tão vasto consumo de bebidas alcoólicas que ao anoitecer havia bêbados por toda parte, alguns caídos nos passeios ou criando confusão na via pública. Era festa semanal gigantesca, rendosa, ruidosa, mágica, sustentáculo do comércio, cheia de atrações, cantadores, cordelistas, jogos de azar, ambulantes de cobras e outros bichos “falantes”, mostra mais espontânea e autêntica do que qualquer das manifestações de folclore que hoje aparecem a fórceps. Desapareceu mas deixou saudades (Hugo Navarro)
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