Túnel do tempo
Um dos grandes historiadores da vida feirense,
discípulo do tio Arnold Silva, o jornalista Hugo Navarro Silva, falecido no mês
de março, falou da Feira de tempos idos no artigo "Feira Ampla, Geral e
Irrestrita" em setembro de 2011, no dia da cidade. Vale a pena lembrar de
novo:
Feira ampla, geral e irrestrita
- Hugo Navarro
Nem todos vão acreditar, mas Feira já foi cidade de
vida pacata e agradável, de ruas e praças largas, motivos de orgulho e ufanismo
dos nativos, que viam, ali, razão de superioridade sobre outros centros
urbanos, mais conhecidos e mais famosos, como Santo Amaro, São Felix e
Cachoeira, de vias tortuosas, estreitas, em que ladeiras, calçamento irregular
e casario antigo davam a impressão de que o Brasil dos tempos do rei ali
continuava imutável.
Até a capital do Estado perdia na comparação. No
entanto a cidade parecia mais morta do que viva. Quase ninguém nas ruas, cinco
ou seis carros de aluguel na Praça da Bandeira, que dormitava sob o sol de
verão ou parecia encolhida nos dias de chuva, ouvindo os auto-falantes da “Casa
da Louça” de Hermógenes Santana inaugurados, festivamente, com Georgina
Erismann, ao piano, e a voz de Euclides Mascarenhas e Willobaldo Silva (cantor,
violonista e tipógrafo).
O centro da cidade era enfeitado pelas normalistas
que povoavam a Rua Conselheiro Franco e, nas horas de folga, a bucólica Praça
da Matriz, quando mocinhas despreocupadas, alunas da Escola Normal, espalhavam
beleza e juventude na tristeza das ruas e do comércio desanimado. Funcionário
do Banco do Brasil teve que se afastar da cidade. Reapareceu, anos depois, na
Rua Conselheiro Franco, perguntando, desolado, onde estavam as normalistas. Não
havia mais. A Escola Normal já não existia.
Feira de Santana, entretanto, transformava-se como
se movida por feitiço prodigioso nas segundas-feiras. A transformação era
rápida e completa para alegria dos comerciantes. Desde as primeiras horas da
manhã, mal o sol esquentava, fervilhava a feira livre na Praça João Pedreira,
que nos últimos tempos começava de véspera. A cidade enchia-se de visitantes.
Chefes de Distritos, comerciantes e fazendeiros apareciam de guarda-pó, paletó
e gravata em montarias ajaezadas em que não era incomum a presença da prata.
A grande maioria, entretanto, vinha de qualquer
forma: de cavalo, burro, jegue, na sela ou na cangalha, não poucos
transportando mercadorias em sacos e cofos. Traziam de tudo. Frutas, folhas,
esteiras, cestos, panelas de barro, urupembas, aves, ovos protegidos em sambambaias,
plantas, peles de animais, remédios, aipim, batata doce, raízes e tudo mais que
podia ser produzido na zona rural como rosários de ouricuri, bebidas, santos de
madeira e figuras de barro.
Rapidamente centenas de pessoas tomavam as ruas e
enchiam as praças. A feira livre, que começou na Praça de João Pedreira, com o
passar do tempo espalhou-se. Tomou a Praça Dr. Remédios Monteiro, onde havia
forte comércio de couro de Álvaro da Silva Lima (Ioiô de Calú) e Gonçalo Alves
Boaventura, invadiu a Rua Mal Deodoro com a venda de móveis, e por último, a
Avenida Getúlio Vargas.
O número de montarias cresceu tanto, nas ruas
centrais, que na Sales Barbosa instalaram, nas calçadas, argolas de ferro para
prender os bichos, e forçou o aparecimento de abrigos para animais, em várias
partes da cidade, “estacionamentos” como acontece, hoje, com os automóveis. O
ajuntamento de animais nas ruas criou problema contra o qual as senhoras
protestavam. Os bichos, ainda que amarrados, procuravam dar vazão aos naturais
instintos, promovendo espetáculos que os humanos imitavam, nos “castelos”, que
muitos havia, de grande movimento às segundas.
Amantes, de alguma forma reprimidos e vigiados,
vinham a esta cidade resolver seus problemas, de modo que a feira livre era
mais ampla, geral e irrestrita do que geralmente se pensa, com tão vasto
consumo de bebidas alcoólicas que ao anoitecer havia bêbados por toda parte,
alguns caídos nos passeios ou criando confusão na via pública. Era festa
semanal gigantesca, rendosa, ruidosa, mágica, sustentáculo do comércio, cheia
de atrações, cantadores, cordelistas, jogos de azar, ambulantes de cobras e
outros bichos “falantes”, mostra mais espontânea e autêntica do que qualquer
das manifestações de folclore que hoje aparecem a fórceps. Desapareceu mas
deixou saudades.
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