Fotografias em tamanho real instaladas por artista em fachadas de casas no povoado de Morrinhos mudam a paisagem e a autoestima da população. Confusão virou rotina entre moradores
Dona Doralice, 88 anos, tomou um
susto: ‘Pensei que a minha casa tinha sumido’, conta como foi ver o lugar onde
mora após o trabalho da artista visual Maristela Ribeiro
(Foto: Amana Dultra)
É verdade que a estrada, a grama
e a cerca são comuns em Morrinhos. Só
que, nesse caso, não passava da fachada da casa onde mora desde que nasceu, com
uma pitada de ilusão de ótica.
Quem olha rápido – e até quem
olha atentamente – pode não perceber que ali existe uma fotografia adesiva,
impressa em tamanho real e colada no que antes era a parede branca. A
intervenção faz parte de um trabalho da artista visual Maristela Ribeiro,
professora do Instituto Federal da Bahia (Ifba). Há um ano, ela começou um projeto que pretendia mostrar a
realidade de Morrinhos aos seus próprios moradores e ao mundo.
Não, dona Maria Luísa não está
numa estrada de chão. Está na frente de sua casa em Morrinhos, Feira. Mais
especificamente, na frente da porta - que até ela tem dificuldade de ver
(Foto: Amana Dultra)
Após oferecer oficinas de arte e
fotografia à população, Maristela partiu para a última fase do projeto, que
começou em dezembro e se estendeu até março. “Não encontrei nenhuma imagem da
comunidade, que existe desde 1940. Imaginei trazer a paisagem regional e usar
as casas como telhado”, afirma Maristela, que usa o projeto na pesquisa no
doutorado em Artes na Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Metáfora
Apesar de chamar atenção dos
quase 400 moradores e também dos forasteiros, a casa de dona Luísa não é a
única: as paisagens de Morrinhos foram transportadas para outras nove das cerca de 90 residências
do local.
“Meu objetivo era que as casas
desaparecessem. Para mim, era uma
metáfora sobre o esquecimento do local, sobre como essas pessoas são deixadas
de lado e se tornam invisíveis”. Lá, a maioria dos moradores vive em casas de
taipa, sem saneamento básico. A principal fonte de renda, além da agricultura
familiar, é o Bolsa Família, segundo a pesquisadora.
Morrinhos: cerca de 90 casas, 400
moradores e muito esquecimento
(Foto: Amana Dultra)
(Foto: Amana Dultra)
Pois, o objetivo foi alcançado. A
casa de Luísa, assim como as outras, sumiu. “Eu demorei para achar a porta, na
primeira vez”, lembra. Por sorte, viu o poste que fica quase ao lado da casa.
“Agora, olho o poste! A porta fica perto dele”. Até os vizinhos estranhavam.
“Perguntavam: cadê a casa de Luísa? Agora, todo mundo está encantado”,
orgulha-se.
Confusão
A reação de dona Doralice Lopes,
de 88 anos, foi parecida. Seis dias atrás, ela não fazia ideia de que sua casa
tinha se transformado em uma cerca que separa a estrada de terra de um rebanho
de cabras.
Nos últimos quatro meses, o
filho, o lavrador José Boaventura, 68, esteve sozinho na casa de três quartos –
ela descansava na casa de outra filha, em Salvador, depois de uma cirurgia “nas
vistas”. Quando chegou, não reconheceu a residência onde sempre morou.
“Perguntei: cadê minha casa,
gente? Achei que tinha sumido! Quando saí, minha casa era branca. Voltei e
estava verde!”, comenta, deslumbrada. Ela nunca tinha visto uma foto em tamanho
real. Agora, sentada em um banco de madeira sem recosto, dona Doralice também
vê a Rua das Rosas, embora a tal rua não fique ali. O que ela vê, na verdade,
é a fachada de outra casa que reproduz a
via do povoado.
Artista Maristela Ribeiro
(calça), em frente à casa de dona Doralice (laranja): metáfora
(Foto: Amana Dultra)
“Eu nasci, me criei e perdi os
dentes em Morrinhos, mas nunca tinha visto uma coisa tão bonita!”. Acostumado a ouvir promessas de políticos que
não se concretizam, o filho dela, seu Nonô, achou que o mesmo fosse acontecer
com a nova casa. “A gente pensava que não ia sair nada. Quando ela (Maristela)
chegou e jogou o papel, foi que a gente viu. Todo mundo amou”.
Atração
Das dez casas, seis ficam na
praça central da comunidade - que também concentra a maior parte da vida do
povoado. Quase de frente para a igreja, a cachorra Pintada corre em direção às
garças que sobrevoam os mandacarus. Contudo, só a cadela está realmente ali.
Garças e mandacarus estão representados na casa da lavradora Joana Lopes, 52.
“O povo vem filmar, gravar, tirar
foto. Eu fico até preocupada, do jeito que as coisas estão hoje, né?”, dizia,
enquanto um grupo de crianças parava em frente à casa para admirar a paisagem.
“Ver a casa assim é bom demais. Pena que a gente ainda não tem condições para
reformar dentro, né?”, lamentou, mostrando a parede lateral do imóvel,
construída com adubo de barro.
Hoje, Maristela é reconhecida por
onde passa, em Morrinhos. Não é política, nem popstar. Mas, lá, é quase uma
celebridade. “No início, eles tinham desconfiança, mas são muito hospitaleiros.
Perceberam que seria uma troca, porque eles têm uma estética própria”. E se
depender dos moradores, essa estética vai ficar exposta por muito tempo, como
garantiu dona Doralice: “Não deixo tirar. Só o tempo pode levar embora”, avisa.
População reclama que
abastecimento de água foi interrompido
há 15 dias
Castigados pela seca, os
moradores de Morrinhos têm se virado sem água há 15 dias. Para completar, a
maioria das casas também não tem saneamento básico. “A gente vai buscar água
num tanque duas, três vezes por dia”, conta o lavrador André Batista, 76 anos.
Sem água há 15 dias, moradores de
Morrinhos são obrigados a carregar baldes e galões
(Foto: Amana Dultra)
O tanque fica a cerca de dois
quilômetros do povoado, no terreno que faz parte de uma fazenda da região.
Todos os dias, eles caminham até lá com carros de mão e baldes na cabeça. “O
tanque é fundo, quase do tamanho do poste, quando está cheio. Mas quem alimenta
é a chuva e não está chegando nem nas pernas”, diz, apesar de não saber dizer
há quanto tempo não chove.
A água que resta se mistura com a
lama do fundo do poço. “Como se não bastasse, a gente disputa com animais que
bebem a água. É cavalo, cachorro, porco...”, afirma o lavrador Ivonaldo
Barbosa, 30.
Procurada pelo CORREIO, a
assessoria da prefeitura de Feira de Santana não deu um posicionamento oficial
até o fechamento desta edição, às 20h. Já a assessoria da Embasa, responsável
pelo fornecimento de água, não confirmou a informação, devido à paralisação
administrativa de 24 horas do órgão, ontem.
Povoado tem cerca de 400
moradores em 90 casas
Localizado no distrito de
Jaguara, em Feira de Santana, o povoado de Morrinhos tem quase 400 habitantes,
que vivem em cerca de 90 casas. Para chegar até lá, é preciso seguir pela
BR-116 e pela Estrada do Feijão.
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